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Certificado de conclusão do curso de legislação de trânsito e de primeiros socorros comprado em uma auto-escola por R$ 80

Izabela Ferreira Alves/Estado de Minas - Fácil, rápido e sem burocracia. Nunca foi tão simples conseguir o certificado de conclusão do curso de direção defensiva e de primeiros socorros para renovação da carteira nacional de habilitação (CNH). Ainda mais quando um funcionário do Departamento de Trânsito de Minas Gerais (Detran-MG) – órgão executivo do Sistema Nacional de Trânsito, que tem a competência para fiscalizar o cumprimento da lei – indica as auto-escolas que vendem o documento de maneira simples. O jornal Estado de Minas (EM), por meio desse agenciador, comprou um diploma, sem freqüentar nem uma aula sequer, por R$ 80. Pagou caro. Outra auto-escola, também indicada pelo funcionário, cobra R$ 70. Ainda é caro. As ilegalidades foram denunciadas pelo Estado de Minas em julho do ano passado. Na época, o preço da fraude variava entre R$ 45 e R$ 50.

A primeira conversa com Messias Rocha, servidor do Setor de Prontuário do Detran, subordinado à Polícia Civil, foi nos corredores do órgão, na Avenida João Pinheiro, Centro-Sul de Belo Horizonte. No balcão de informações, funcionárias explicaram os pré-requisitos para renovação da carteira. Desde a entrada em vigor da Resolução 168 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), o motorista habilitado antes de 1994 precisa, conforme o artigo 150, fazer curso teórico de atualização, de 15 horas/aula e prova nas auto-escolas, ou pode optar por estudar sozinho, comprando a apostila nas bancas ou imprimindo da internet, e fazer o teste no Detran. A segunda opção fica mais barata, pois a taxa da prova no Detran é R$ 33,06 e os cursos nos centros de formação variam de R$ 60 a R$ 100. Em ambos os casos, é preciso pagar mais R$ 39,67, para marcar o exame médico, etapa final da renovação.

Solícito, o funcionário do Detran ofereceu ajuda. A história contada a ele já foi repetida muitas vezes, nas recepções de auto-escolas, segundo as próprias secretárias. “Todo dia alguém pergunta se não é possível obter o certificado sem fazer as aulas”, diz a funcionária de uma auto-escola tradicional na Rua Sergipe, no Centro. O exemplo não foi diferente. Para resolver um problema de saúde na família, um homem de meia-idade, vindo do interior, estava em BH e queria aproveitar para tirar o certificado. Mas ele não teria tempo para as aulas. O funcionário do Detran entra em uma das portas restritas do órgão e volta com um cartão na mão. “É só dizer que falou comigo, Messias, o ‘fortão’ aqui do Detran. Se não der certo, volte aqui que eu indico a auto-escola de um parente meu”, disse.

Pelo telefone, o esquema é arranjado rapidamente. “Pode vir aqui. Nós resolvemos para você”, garantiu o homem que se identificou como Augusto Rodrigues e dono da Auto-Escola Santo Agostinho, na Rua Aimorés, região Centro-Sul. Lá, é preciso assinar uma lista de presença, como se o interessado tivesse comparecido às aulas. A prova, em branco, também é assinada e fica arquivada no local com uma cópia da carteira vencida. Como os centros estão conectados on-line com o Detran, as informações foram passadas imediatamente. “Se você quiser fazer a prova, pode. Mas não aconselho”, brincou Augusto. Sem ler nem uma linha sobre como evitar acidentes, cuidados na direção, normas gerais de circulação e conduta ou cuidados com a vítima e sinalização dos locais do acidente, o certificado adquirido de maneira fraudulenta é prova de que é possível pular etapas para renovar a carteira.

Para descobrir outras auto-escolas envolvidas com a irregularidade, o EM entrou em contato com o funcionário do Detran, que havia indicado a auto-escola em que o certificado foi comprado. “Não é que eu estou ensinando coisa ruim. É porque, quando a pessoa é velha, é complicado”, disse. Dessa vez, ele fez outras duas indicações. “Da primeira vez, você perguntou se conseguia isso com o despachante e eu expliquei que isso é na auto-escola. Mas não são só nessas não”, completou. Uma delas é de um detetive aposentado e funciona no bairro Cachoeirinha. A outra é na Rua Formosa, em Santa Tereza, região Leste. Por telefone, a recepcionista Ana Paula se ofereceu para resolver o problema. “Esse negócio a gente não fala pelo telefone. Ele vem aqui, assina os documentos de que eu preciso e a gente libera a documentação”, afirmou.

De acordo com a legislação, devem participar do curso motoristas que não freqüentaram aulas quando tiraram a carteira. Por se tratar de pessoas que dirigem há tempos, os conteúdos das apostilhas têm de ser passados de forma dinâmica, participativa, buscando análise e reflexão sobre a responsabilidade de cada um para o trânsito seguro. Mas para uma aluna da Auto-escola Pedro I, que não quis se identificar, o curso foi uma afronta à sua inteligência. “Fiquei indignada. No primeiro dia, a recepcionista ficou lendo a apostila comigo. No segundo, exibiram um vídeo, não falaram nada e dispensaram a turma. No terceiro, falaram que eu não precisava mais ir, porque o certificado já estava no Detran. Nem querendo fazer o curso, consegui assistir a aulas de qualidade”, reclama. O dono da auto-escola, Celso Gonçalves de Oliveira, disse que desconhecia a prática. “Fico mais na rua, dando aulas de direção. Foi bom saber, porque vou me informar melhor para aprimorar o serviço e corrigir os erros. Estamos com uma funcionária nova”, justificou.

Auto-escolas cobram punição

O presidente do Sindicato dos Proprietários de Centros de Formação de Condutores de Minas Gerais (SIPROCFC-MG), único órgão oficial da categoria em Minas, Rodrigo Fabiano Silva, lamenta a mancha na imagem das auto-escolas e reclama da atuação do Detran. “Já detectamos vários outros casos, mandamos as informações para o Detran, há algum tempo, e nada foi feito. Ainda não nos deram nenhuma resposta”, diz. Ele espera mais rigor do órgão, para punir os ilegais. “Quando é descoberta a ilegalidade, o Detran não está sendo exemplar na punição. Não descrendencia os centros e nada de grave acontece com os donos, o que incentiva a continuidade do problema. Os cursos para renovação da CNH viraram, realmente, um mercado, por causa da falta de fiscalização”, afirma.

Também cobra a implantação do sistema biométrico, capaz de comprovar a presença do aluno na auto-escola por impressão digital. “A previsão do Detran era de que fosse obrigatório ainda no primeiro semestre deste ano. Outra situação que deve ser fiscalizada de perto é a facilitação da carga horária, tanto no curso de legislação e direção quanto para renovar a CNH. O aluno paga, freqüenta uma ou duas aulas e o certificado já é enviado pela auto-escola”, denuncia.

Coordenador de administração do Detran, Carlos Alberto Costa e Silva garante que as denúncias feitas à Polícia Civil são apuradas. “O que nos foi informado no ano passado está sendo encaminhado. A Divisão de Habilitação e Controle do Condutor tem uma seção que fiscaliza e apura as irregularidades. Todos os inquéritos instaurados no ano passado já estão na Justiça ou aguardam complementação”, afirma. Ele não sabe quantos processos foram encaminhados, mas garante que as informações são checadas, ainda que o denunciante opte pelo anonimato.

“Fica difícil investigar quando não temos os nomes. E essas pessoas que se beneficiaram do esquema não ligam, pois têm medo de ser punidas também”, justifica. Sobre a situação do funcionário do Detran que indicou as auto-escolas que vendem o certificado, o coordenador disse que será preciso checar se ele trabalha, realmente, no órgão. “O prédio do Detran é aberto, público, e a circulação é imensa. Já prendemos estelionatários aqui, que se diziam funcionários do Detran”.

Para Carlos Alberto, o fato de as auto-escolas estarem conectadas on-line com o Detran, mudança implantada recentemente, já é um grande passo, pois inibe tentativas de irregularidades. “Só o dono da auto-escola ou funcionário por ele autorizado, que tenha a senha, pode entrar no sistema. Com a certificação é digital, a responsabilidade pelas informações é de quem digitou, mas precisamos das denúncias. Sem elas, temos que acreditar no que é passado pelas auto-escolas”, ressalta. O coordenador conta com oito equipes especializadas, de até seis funcionários de setores específicos, para fiscalizar todos os procedimentos do Detran, em todo o estado. “Agimos na capital e no interior e considero o número de fiscais suficientes. Temos que presumir a honestidade das auto-escolas”, afirma.

Segundo ele, ainda não há previsão de quando será implantado o sistema de biometria para comprovar a presença dos alunos nas auto-escolas. Conforme a resolução 74 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que regulamenta o credenciamento das auto-escolas pelos Detrans, desde que apurada a responsabilidade, o instrutor ou a auto-escola pode, em procedimento administrativo, ser advertido ou suspenso por até 30 dias.Para denunciar, o interessando pode ligar para o Disque-Denúncia da Polícia Civil. Os números são 0800-305000 ou 3236-3318. (IFA)

06 jan 2014 - JORNAL ESTADO DE MINASVoltar