NOTÍCIAS » GENOCÍDIO SOBRE RODAS

Gustavo Krause

Carros e motos pilotados por delinquentes, governantes incompetentes e irresponsáveis, sistema de educação/prevenção/repressão/punição ineficazes e lenientes ferem e matam por atacado os cidadãos brasileiros. Virou epidemia, ou seja, doença que se propaga e atinge grande número de vítimas, assumiu a grave dimensão de um genocídio sobre rodas, ou seja, crime praticado por ação dos usuários e omissão das autoridades cuja extensão destrói, como ocorre com os genocídios clássicos, um grupo nacional, no caso, os brasileiros. Qual o verdadeiro tamanho da tragédia?

Começa por aí a gravidade do problema: o Brasil não dispõe de dados estatísticos confiáveis e capazes de subsidiar políticas públicas de combates às epidemias. Em relação aos acidentes de trânsito, os dados são desatualizados e precários.

Para medir esta calamidade nacional, o Denatran computa mortes in loco a partir dos boletins de ocorrências lavrados pela polícia, o Ministério da Saúde registra óbitos ocorridos em estabelecimentos hospitalares tendo por base o Datasus e o preenchimento da Declaração de Óbitos (DO) pelos peritos designados, a Seguradora Líder dos Consórcios de Seguros DPVAT 2 tem como fonte o pagamento do seguro obrigatório por morte em trânsito.

Incompletos, subestimados, insuficientemente desagregados, a verdade é que todas estas distorções estatísticas não encobrem um elemento comum: a dimensão trágica dos acidentes de trânsito no Brasil. Em números redondos, o pico de mortes no Brasil por acidente de trânsito foi 66 mil, em 2007, o que significa o horror de 183 por dia e 7,6 por hora de vítimas fatais, em 2008, o total foi de 57 mil óbitos o que equivale a 156 por dia e 6 por hora. Em termos comparativos e estabelecendo a correlação entre o número de habitantes e frota de veículos, no Brasil ocorrem 30,1 mortes por cada 100 mil habitantes, nos EUA, 12, 5 e na UE 7,8 (Holanda, 4,1) o que vale dizer que o Brasil mata 2,5 mais que os Estados Unidos e 3,7 mais que a União Europeia, para cada 10 mil veículos a letalidade atinge 10,5 brasileiros e 1,2 americanos. Agora, segure o coração: a faixa etária mais atingida pelos óbitos é dos 20 aos 29 anos, seguida dos 30 aos 39.

Quando se consideram os acidentes envolvendo motos, o problema assume proporções alarmantes não somente quanto ao número de acidentes fatais quanto em relação às graves sequelas produzidas pelos sinistros. O crescimento de acidentes aumenta em progressão tão assustadora que um pesquisador de trânsito e saúde não conteve a indignação ao dizer: "O financiamento das motos deveria vir acompanhado de enterro grátis para o motoqueiro".

Em dezembro de 2005, o Ipea publicou estudo sobre os impactos econômicos dos acidentes associados às pessoas, chegando às seguintes cifras R$ 1.040, R$ 36.305 e R$ 270.175 como o custo médio para pessoas ilesas, feridas e vítimas fatais, respectivamente. Deixando de lado o preciosismo estatístico, os prejuízos ascendem a muitas dezenas de bilhões de reais, cálculo que não mede os efeitos emocionais devastadores das famílias afetadas por este cenário funesto.

O que é mais grave no quadro da violência multifacetada que atinge as pessoas é certa convivência/conivência com a brutalidade e a banalização com que se encara a perda de vidas preciosas. Perpassa a sociedade uma sensação de conformismo e apatia. De outra parte, a política econômica turbina o consumo, o governo exibe o aumento das frotas como um troféu na luta contra os efeitos da crise econômica o que seria compreensível, caso houvesse a contrapartida razoável de uma política responsável em relação à segurança no trânsito. Da prevenção inconsistente, passando por fiscalização e repressão ineficientes, de estradas mal cuidadas ao espesso manto da impunidade, tudo conspira contra a integridade e a vida dos brasileiros que se aventuram no prosaico exercício do direito de ir e vir nas vias urbanas ou na malha rodoviária do país continental. Desta forma, sou forçado a concordar, em parte, com Luigi Pirandello que dizia: "O automóvel é uma criação do diabo", em parte, porque os avanços tecnológicos somente são armas diabólicas quando os homens, criação de Deus, deixam-se levar pelas tentações dos "anjos caídos". Pelo sim, pelo não, vendi meu carro depois de assegurar o emprego do bom motorista que me supria da deficiência (?) de não saber dirigir. Que felicidade! Fiquei livre dos flanelinhas, dos fabricantes de multa, do IPVA, do seguro, dos gastos com gasolina, revisão, troca de pneus, estacionamento, hoje, sou sócio de milhares de automóveis, digo, da frota de táxi que me leva para onde quero com menos estresse e muito mais em conta.

» Gustavo Krause, consultor, foi ministro da Fazenda e do Meio Ambiente

30 mar 2010 - Jornal do ComércioVoltar