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Adivinhe quem sou eu?
"Sou a saideira, que não termina nunca ou que acaba em morte, que enfrenta todos os fantasmas à frente, que não vê o poste, que não tem amor à vida"


Não tenho ideologia, partido, religião. Estou em todos os lugares e classes sociais, dentro e fora das universidades públicas e privadas, nos bares, boates, festas, aniversários de 15 ou de 70 anos para imprimir mais colorido, já que não sou dono de mim mesmo. Preciso da embriaguez para me destacar, para ser alguém, para dizer o que quero e o que não quero, para dar mais coragem ao volante, achar que sou melhor, mais veloz do que o velhinho que vai devagar e prudentemente à minha frente: “Oh, véio, vá para casa dormir”, incentivo o motorista a gritar, a ser cada vez mais agressivo, a pisar forte no acelerador, afinal, percorro o sangue dos jovens, impregno o coração, mando em suas ondas cerebrais.
Estou nas primeiras páginas dos jornais todos os dias, sou a manchete principal, faço parte das estatísticas mais sinistras, que levam embora jovens entre 18 e 29 anos. Ceifo vidas como se fosse um deus – ou um demônio com seu tridente a infernizar os seus momentos que seriam de prazer. Enfrento a morte de frente, sem escudo protetor ou cinto de segurança. Ando apressado, quero passar no sinal amarelo. Nem ligo para o vermelho, ainda mais de madrugada, depois da balada interminável.

Sou o seu pior pesadelo, o abismo a seus pés. Sou a porta do desespero, o portal da solidão, as janelas abertas para os desvarios, os caminhos que conduzem à insanidade, as trilhas pavimentadas comas pedras do absurdo. Sou a noite de insônia das mães, responsável pelos olhos arregalados dos pais. Sou uma casa sem paz, o inimigo do silêncio, companheiro inseparável da fúria. Bato portas quando chego em casa. Ligo a música na maior altura, mesmo às 5h da manhã. Quem está dormindo que acorde, porque nem me importo. Sou mais eu depois da quinta dose, que me faz desprezar o outro, mesmo que seja o pai, a mãe, o irmão, a avó ou a tia.

Não quero nem saber do síndico, do vizinho, do mais velho que ainda está dormindo. Sou mais forte do que todo mundo, até que a ressaca me acorde no outro dia. Ou me deixe dormir para sempre um sono letárgico, preguiçoso, condescendente, perigoso.


Não quero conselhos, não sou doido nem doente para me tratar, mas vivo pedindo socorro depois da 20ª cerveja. Mas que não me falem antes da hora, nem em nome dos analistas, dos terapeutas em divã. Não, não preciso de ninguém. Só da sensação de poder, do alto teor dos sentimentos, dos etílicos sonhos com a turma.

Não venham me dirigir nem dizer que existe táxi nessa hora duvidosa do anoitecer. Não preciso de ninguém, muito menos de alguém que grita ao meu lado palavras de ordem. Que vem com esse lero-lero sem fim de que o controle motor está perdido no volante, nas ruas da cidade.

Sou a saideira, que não termina nunca ou que acaba em morte, que enfrenta todos os fantasmas à frente, que não vê o poste, que não tem amor à vida. Sou a dose extra, ando na faixa proibida só para me exibir, corto pela direita, encosto no carro da frente só para me divertir, para mostrar que sou todo-poderoso.

Não tenho seta nem direção. Sou o som do carro aos berros para me parecer com uma boate. Afinal, o carro é presente do pai para alguém que acaba de completar 18 anos. Se o pai me autoriza, quem me há de impedir?

Não tenho pena de ninguém. Nem vejo a mãe chorar e se descabelar e avisar e pedir e repetir a mesma ladainha de frente que direção não combina com álcool. Os mandamentos da vida eu mesmo faço. As leis são minhas, não respeito nem a viatura à minha frente.

Adivinhe quem sou eu?

Sou o seu engradado de cerveja, a segunda garrafa de tequila vazia, a cachaça que leva ao delírio. Eu sou o campari vermelho como o sangue a me seduzir. Sou o verde da menta que escorre pela boca. Sou o seu dia de azar. Ah, espere um instante, porque o celular está tocando, e eu vou atender mesmo que você me critique, me olhe atravessado. Afinal, sou a ligação maior com o seu medo. Adivinhe quem sou eu?
24 set 2007 - Estado de Minas - Déa JanuzziVoltar