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Lei seca mais absolve do que pune

LAURA LOPES

sxc.hu

Na cidade de São Paulo, apenas uma carteira de motorista foi definitivamente cassada em 2009 por conta da lei seca. Com um ano e meio de lei seca, apesar da realização de mais campanhas e fiscalização em alguns locais para conter o consumo de álcool aliado à direção, o maior rigor da legislação não se reflete em mais punições aos infratores. Na cidade de São Paulo, que concentra quase de 14% da frota de automóveis do país, apenas uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH) foi definitivamente cassada em 2009 porque seu dono foi pego dirigindo embriagado ao volante pela segunda vez. No mesmo ano, somente 53 condutores tiveram a carteira suspensa, de um total de 2.965 os processos contra condutores flagrados em blitze da lei seca.

Para fechar brechas deixadas pela legislação, que permite que motoristas embriagados se esquivem das penalidades previstas, uma comissão da Câmara dos Deputados prepara novas mudanças para o Código Brasileiro de Trânsito, com endurecimento da lei seca. Se forem aprovadas, o condutor que estiver com sinais notórios de embriaguez será criminalizado, mesmo que se recuse a fazer o teste do bafômetro. Além da multa e da perda da habilitação, terá de cumprir pena de detenção de 6 meses a 3 anos. Será que agora vai adiantar?

A lei seca, da forma como foi escrita, possibilitou interpretações diversas. Por exemplo, a lei prevê que a medição do grau alcoólico do sangue do condutor seja feita apenas por meio de exame de sangue. Um decreto posterior permite que o bafômetro seja usado para isso. Nem todos os juízes consideram o texto do decreto. Em São Paulo, “tem uma corrente no Tribunal que acha que o exame por bafômetro não carateriza alcoolemia (quantidade de álcool no sangue). Os juízes só aceitam exame de sangue e absolvem até mesmo os condutores que sopram no bafômetro e ultrapassam o limite de alcoolemia previsto em lei”, afirma o advogado especializado em Direito Penal Aldo Costa.

Há outra questão que envolve o bafômetro e a Justiça – e pode estar livrando muita gente que dirigiu embriagada da culpa. O Superior Tribunal Federal (STF) se pronunciou dizendo que se não for feito o teste do bafômetro, a pessoa não poderá ser condenada, afirma Costa. Antigamente, o condutor era punido se dirigisse sob efeito de álcool e um exame de sangue indicasse essa condição. O bafômetro não era mencionado na lei. Com a lei seca, quem foi julgado no passado pode pedir uma revisão do processo e se livrar da punição. “A nova legislação é mais benéfica e a Justiça diz que se uma lei mais nova beneficia mais pessoas, ela pode ser usada para recorrer em ações do passado”, diz o especialista. Ou seja: um sujeito que foi condenado por dirigir embriagado antes do advento da lei seca, e à época não usou o bafômetro, pode ter sua condenação anulada. A nova lei retroage em benefício do culpado.

E se o condutor se nega a fazer o teste? O STF diz que não se pode condená-lo. “Há casos absurdos”, diz o advogado Aldo Costa. Segundo ele, há episódios em que o sujeito está caindo, nitidamente embrigado, mas não faz o teste do bafômetro. Mesmo assim, na delegacia, os policiais fazem a ocorrência, ainda que não tenham a prova necessária para caracterizar o crime. Isso vai para a Justiça e, quando chega lá, costuma dar em nada. A pessoa é absolvida. “Os próprios condutores escolhem se serão processados ao decidir soprar ou não no bafômetro. O objetivo dessa lei é acabar com a impunidade, mas está acontecendo exatamente o contrário”, afirma Costa. Segundo uma pesquisa feita pelo advogado nos tribunais estaduais do país, em 80% dos casos em que o condutor não sopra bafômetro, ele é absolvido em segunda instância. Todos os custos que envolvem desde a blitz policial à absolvição são arcados pelo Estado: bafômetro, força policial nas blitze, boletim de ocorrência, processos judiciais, custos de processo, juiz, promotor... e a grande maioria dos casos é arquivada. “Se a lei seca diminuiu as despesas com o Sistema Único de Saúde, é, ao mesmo tempo, uma empresa que mascara débitos”, diz Costa.

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), há quem tenha pedido recurso de salvo-conduto para não ser obrigado a fazer o teste do bafômetro se parado em blitz. O STJ negou todos os pedidos. Segundo nota publicada pelo tribunal, o argumento nos pedidos de salvo-conduto é sempre o mesmo. Os condutores alegam que a lei seca é inconstitucional, uma vez que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. O objetivo é ter o direito de se recusar a fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue e, consequentemente, não ser obrigado a comparecer à repartição policial para aplicação da suspensão do direito de dirigir e da apreensão do veículo. Segundo o ministro Joaquim Barbosa, do STF, a lei não obriga a pessoa a produzir prova contra si própria, uma vez que existem outros meios de prova admitidos para constatação de embriaguez (“notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”, segundo a lei). A própria lei prevê que serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas (...) ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos.

Ações positivas

São Paulo: o Programa Táxi Amigão - Amigo da Lei Seca oferece tarifa de bandeira 1 nas noites de sextas-feiras, sábados e nas vésperas de feriados (20h às 6h). O táxis que aderirem ao programa terão benefícios, como estacionamento liberado nas vagas de Zona Azul aos sábados, preferência no credenciamento em eventos de grande demanda de táxis, como o Carnaval e o GP de F-1 e atendimento exclusivo no Departamento de Transporte Público.

Rio de Janeiro: a Operação Lei Seca do governo do Estado leva cadeirantes que foram vítimas de acidentes de trânsito a locais em que se ingere álcool ou podem-se encontrar condutores, como bares, restaurantes, quiosques e postos no Rio e Grande Rio. Metrôs, barcas e táxis foram adesivados com as frases “Operação Lei Seca, Vá de Metrô”, também nas variações “Vá de Barca” ou táxi. Os cadeirantes também são levados nas blitze e conversam com os motoristas que são submetidos ao uso do bafômetro. A operação é permanente e abrange os bairros da capital e municípios da Região Metropolitana (Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Maricá) e da Baixada Fluminense.

Foz do Iguaçu: em julho de 2008, o Sindicato de Hotéis, Restaurantes e Bares e o Sindicato dos Taxistas lançaram a campanha “Se beber não dirija, vá de táxi”. Quem beber acima do permitido e pegar um dos carros identificados com selo vermelho tem descontos de 10 a 20% nas corridas. O serviço funciona 24 horas e basta ligar para 0800 643 7878.

Curitiba: no começo do ano passado, a Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa estampou 60 outdoors da região metropolitana da capital paranaense com o lembrete “Motorista: se for beber, vá de táxi” nas saídas para o norte e o litoral do Estado. Também foram distribuídos 500 mil panfletos e banners em diversos bares, restaurantes e casas noturnas.

Pernambuco: em agosto de 2008, o governo de Pernambuco lançou, em todas as emissoras de televisão, no horário nobre, a campanha “Seja legal, se beber não dirija”. Além do VT com 30 segundos, a iniciativa se estendeu às rádios e à internet. As peças publicitárias informam as punições previstas para os infratores e ressaltam as vidas já salvas desde que a lei foi sancionada.

Brasil: anualmente, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) promove campanhas de trânsito

A Lei Seca está dando certo. Mas precisa melhorar

Após um ano em vigor, a Lei Seca teve alguns resultados expressivos que deixaram o trânsito mais seguro. Mas é importante reforçar e padronizar a fiscalização para evitar que ela caia no esquecimento, dizem especialistas

Aprovada e sancionada sob muita polêmica em 2008, a lei 11.705, conhecida como Lei Seca, que estabeleceu limites mais rígidos para o ato de beber e dirigir, passou nos últimos dias por uma análise minuciosa. Depois de um ano em vigor, completado neste sábado (20), todos querem saber: a lei deu certo? Pode ser aperfeiçoada? Como isso deve ser feito? Ao responder a essas questões, autoridades do governo e especialistas são unânimes em um ponto: o aumento da fiscalização deve ser o aspecto central do sucesso efetivo da Lei Seca.

"A lei teve bons resultados e produziu um debate importante, mas se ela for desmoralizada, será um retrocesso fenomenal", disse a ÉPOCA o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para Laranjeira, a única forma de sustentar os dados positivos do primeiro ano da lei é ampliar a fiscalização. "O motorista tem que ter a percepção de que pode ser parado", diz. Segundo ele, o exemplo de outros países mostra que a legislação tem que ser acompanhada de punição aos infratores. "Os países que tornaram a lei mais rígida ampliaram a fiscalização, prendendo e multando mais", diz. No Brasil, segundo a Polícia Rodoviária Federal, 320 mil pessoas foram submetidas a testes de nível alcoólico no primeiro semestre deste ano, sendo que 14 mil estavam embriagadas e 9 mil foram presas em flagrante.

Os balanços nacionais divulgados pelo Ministério da Saúde e pela PRF apresentaram dados que devem ser comemorados. O número de internações em hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS) provocadas por acidentes de trânsito teve uma redução de 23% nas capitais entre o segundo semestre de 2007 (quando a lei ainda não estava em vigor) e o segundo semestre de 2008 (período que se seguiu imediatamente à sanção da lei). No mesmo intervalo, o número de mortes relacionadas ao trânsito caiu 22,5%, também nas capitais. Segundo a PRF, seu balanço mostra que houve uma mudança no comportamento dos motoristas. A prova disso seria a diminuição do número de pessoas flagradas dirigindo alcoolizadas. No segundo semestre de 2008, um a cada seis condutores submetidos ao teste do bafômetro estava bêbado. No primeiro semestre de 2009, o número foi de um a cada 40 motoristas.

Há, no entanto, o lado ruim das estatísticas. Algumas capitais, como Belém e Teresina, registraram aumento no número de internações. A região Norte teve crescimento de 66% no número de mortes entre o primeiro e o segundo semestres de 2008. Segundo os dados divulgados pela PRF, o número de mortes nas estradas federais caiu apenas 2%, um índice bem inferior à média das capitais. A característica comum que une todos esses dados negativos é a falta de fiscalização. As polícias têm poucos bafômetros na região Norte, e os que existem chegaram apenas após a lei entrar em vigor. O Amapá, por exemplo, não tinha nenhum bafômetro em 20 de junho de 2008. O Mato Grosso do Sul receberá as primeiras 25 unidades na semana que vem. E dos dez mil bafômetros comprados pelo governo federal em dezembro, menos de um décimo chegou aos Estados. O mesmo problema está nas estradas federais. Segundo a própria PRF, há um déficit de 3 mil policiais no país e o número de bafômetros está muito aquém do necessário.

O doutor em Segurança no Trânsito David Duarte Lima, professor da Universidade de Brasília e presidente do Instituto Brasileiro de Segurança de Trânsito (IBST), afirma que é preciso, além de aumentar a fiscalização, especializá-la. "O Estado brasileiro ainda está despreparado para a aplicação da lei", disse Lima a ÉPOCA. "Não há treinamento para os policiais nem uma estratégia de fiscalização", afirmou. O professor da UnB diz que é preciso ainda criar uma padronização da fiscalização, para definir quanto tempo a pessoa pode ser retida para fazer o teste do bafômetro, se pode repeti-lo e o que fazer se deseja realizar o teste por meio da coleta de sangue.

A posição dos especialistas é comprovada por algumas iniciativas de curta duração realizadas no Brasil. O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, intensificou a fiscalização a partir de março e fez campanhas para divulgar a ação. Em poucos dias, foi possível constatar os efeitos do projeto. Na comparação entre 19 e 30 de março de 2008 e o mesmo período em 2009, houve uma queda de 22,15% nos atropelamentos, 14,10% nas capotagens, 12,6% nas colisões e 15% nas quedas de moto.

A percepção sobre a efetividade da fiscalização é a mesma no governo. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, celebrou no dia 17 de dezembro do ano passado os resultados apresentados sobre a Lei Seca, mas lembrou que há um "grande desafio" pela frente. "É preciso ter em todo o Brasil, em cidades de médio e pequeno portes, a radicalização da fiscalização", afirmou. O mesmo discurso tem o ministro da Justiça, Tarso Genro, que disse na semana passada ver a lei como "o início de uma grande mudança". "Essa mudança tem que ser acompanhada de uma fiscalização muito rígida, que agora está começando a ser feita", disse.

Mais medidas contra a direção perigosa

O governo e os especialistas divergem, no entanto, no que diz respeito às medidas adicionais que podem ser tomadas para ajudar a conscientizar a população sobre segurança no trânsito. O ministro Tarso Genro disse que a única modificação possível na lei seria um aumento das multas, mas que isso ainda "não está nos planos do governo".

Ronaldo Laranjeira, da Unifesp, diz que não há grupo social imune ao problema, mas que é preciso ter uma atenção especial com os jovens entre 21 e 30 anos, que são os que mais dirigem após beber. "É por isso que nos Estados Unidos o limite de decigramas de álcool por litro de sangue é zero para quem tem até 25 anos, e depois aumenta".

David Duarte Lima, da UnB, acha que ainda há mais espaço para a conscientização dos motoristas sobre os perigos de dirigir após o consumo de bebida alcoólica. "É preciso que os governos trabalhem ao lado dos donos de bares e criem alternativas para que as pessoas voltem com segurança para casa", afirma. "O Estado não precisa agir só como inimigo".

08 jan 2010 - REVISTA ÉPOCAVoltar