NOTÍCIAS » MUDANÇA COMPORTAMENTAL PASSA PELAS LEIS

Um dos muitos temas abordados durante a 2ª Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito, em Brasília, foi a importância da fiscalização e da aplicação das leis para a redução de mortes nas estradas e vias urbanas. Principal agente fiscalizador, a polícia brasileira enfrenta déficit de efetivo e desvalorização da profissão. Ainda assim, medidas vêm sendo tomadas para que a epidemia de mortes possa ser contida. Para lembrar, somente em 2013, 42.291 pessoas foram vítimas da violência no trânsito, a maioria jovens do sexo masculino entre 15 e 29 anos.

Em um dos painéis do evento, estiveram reunidas autoridades policiais da Austrália, Espanha, Brasil e Nova Zelândia. A diretora da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Maria Alice Souza, afirmou que, há quatro anos, a PRF vem focando esforços não apenas na fiscalização, mas também na integração e articulação com vários atores que contribuem para com o policiamento.

Em 2011, foi criado o projeto Rodovida, que reúne os ministérios da Saúde, do Transporte, das Cidades e da Justiça. "Agora, a intenção é tornar o projeto, que abrange somente os 70 mil quilômetros de estradas federais, em uma ação que abranja as vias estaduais e municipais. Nossas estradas passam por mais de 4,5 mil cidades", contou Maria Alice. Para ela, o foco do combate à violência também deve incluir a prevenção. "A polícia não pode agir somente na fiscalização. Podemos ser indutores de políticas públicas. Ainda, é importante que haja esforço na educação de trânsito para crianças e comunidade em geral", concluiu.

O general-chefe da Agrupação de Trânsito da Guarda Civil espanhola, Benito Muñoz, afirma que os países precisam oferecer leis que reforcem a atuação policial. "Essas normas devem ser eficazes, proporcionais e claras. Caso contrário, o trabalho de fiscalização é em vão", ponderou.

No Brasil, a lei que proíbe o uso de álcool ao volante é bastante rigorosa, punindo até mesmo quem tomou apenas um gole de bebida alcoólica com multa e suspensão do direito de dirigir. No entanto, o mesmo não pode ser dito para motoristas que são pegos sob influência de outras drogas. "Se alguém tiver cheirado cocaína antes de dirigir, e outra pessoa tiver bebido, somente a última será punida se for pega em alguma blitz", comentou um dos coordenadores da PRF, Eduardo de Sá. Ele relata que, em algumas cidades do Brasil, pagar a multa por estacionar em lugar proibido é mais barato que pagar o valor do estacionamento privado. "O ser humano vai ser pensar no que é mais economicamente viável. Acreditamos que a função da multa não deve ser arrecadatória, e sim punitiva e pedagógica."

A proporcionalidade das leis ainda é uma questão que atrapalha a punição de maus condutores em vários países. Na Argentina, por exemplo, se o motorista matar alguém no trânsito e for comprovado que estava sob efeito de altas doses de álcool, a Justiça considera que ele não possuía noção do que fazia, ou seja, não estava em condições mentais perfeitas. No Canadá, tem havido uma mudança gradual nos últimos anos, mas as punições ainda são brandas. Houve um caso em que o condutor foi condenado à prisão perpétua - ele atropelou uma cadeirante no meio da rua e já havia sido fichado por má condução mais de 30 vezes.

Desigualdade social e no acesso à defesa enfraquecem efetividade do código de trânsito

Soames Job, diretor global de segurança no trânsito do Grupo Banco Mundial, trabalhou durante muitos anos no Brasil. Ele reconhece que a sensação de impunidade e desigualdade atrapalha a mudança comportamental da sociedade. "O problema é que, quando você descobre que pessoas ricas se safam de problemas, isso gera uma raiva, e, no Brasil, há uma discrepância muito grande entre os ricos e os pobres. Basta que apenas uma pessoa tenha conseguido se livrar da punição para que todas as outras achem que também podem escapar", argumentou.

Para evitar a comunicação via redes sociais, Job recomenda às equipes que espalhem falsas informações. "Assim, os aparelhos perdem a credibilidade. Também orientamos que as blitze troquem de lugar rapidamente, para evitar que as pessoas saibam onde elas estão", relatou Job. No entanto, para ele, a fiscalização também deve servir para condutores que nunca são pegos. "Pedir que a fiscalização seja discreta faz sentido, mas, ao mesmo tempo, não faz. As pessoas precisam saber que estamos ali, assim, podem evitar o mau comportamento ao volante por medo da punição. Acaba funcionando também como forma de prevenção."

Declaração de Brasília é aprovada por mais de 130 países-membros das Nações Unidas

No último dia da 2ª Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito, em Brasília, mais de 130 países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovaram a Declaração de Brasília, documento que contribuirá para a mudança do paradigma do debate sobre trânsito em âmbito mundial. A declaração, apresentada pelo ministro da Saúde brasileiro, Marcelo Castro, prioriza a segurança de pedestres, ciclistas e motociclistas, os elos mais frágeis da rede de que envolve a circulação viária.

De acordo com Castro, o Brasil está caminhando na direção certa. "Fizemos o dever de casa. Temos que considerar que a frota brasileira aumentou muito devido à ascensão social. Naturalmente, o número de acidentes cresceria. Mas conseguimos manter o índice estável, e isso já é uma vitória parcial", comemorou o ministro. Ele também ressaltou uma preocupação prioritária do governo com as mortes de condutores e caroneiros de motos. "Nossa legislação é uma das melhores do mundo. Exigimos o uso de capacetes, de cinto de segurança, de cadeirinhas para crianças, air-bag nos carros. Agora, temos de atuar na educação do trânsito e na conscientização da sociedade para que respeitem as normas."

O diretor executivo da Youth for Road Safety (Yours), Floor Lieshout, pediu o envolvimento da população jovem na luta pela redução dos acidentes, chamados por ele de crimes de trânsito. "Mais de 3 bilhões de pessoas no mundo têm menos de 25 anos. Quem melhor do que os jovens para mobilizar comunidades, liderar uma revolução no sentido do combate pela segurança no trânsito?", questionou.

O presidente da Comissão Global de Segurança no Trânsito, George Robertson, também reiterou que não há mais tempo a perder. "Sabemos o que precisamos fazer. Temos cinco anos para atingir uma meta ambiciosa, e, por enquanto, nossos esforços não têm sido suficientes", argumentou. Com a Declaração de Brasília, Robertson espera que os compromissos assumidos pelos governos dos países envolvidos sejam realmente levados a sério.

Carissa Etienne, diretora da Organização Pan-Americana de Saúde e diretora regional para as Américas da Organização Mundial de Saúde (OMS), relembrou as palavras de Zoleka Mandela, cuja filha foi vítima de um crime de trânsito na África do Sul: "Não podemos deixar que essa conferência seja mais um talk show. Temos que lembrar que existem vidas perdidas por trás das estatísticas. O tempo de agirmos chegou".

Notícia da edição impressa de 20/11/2015. Alterada em 19/11 às 22h25min

Suzy Scarton, de Brasília

Foto (crédito): ANTONIO PAZ/JC


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